A Marinha do Brasil tem usado dinheiro público para distribuir ou oferecer bíblias e livros cristãos a seus integrantes. O objetivo é fornecer “educação religiosa” aos militares. As compras vão além das aquisições de material destinado à tradicional área de capelania (assistência espiritual fornecida nas Forças Armadas), como bíblias para seus padres ou pastores, ou estolas, hóstias e velas.
São manuais e atlas geográficos da Bíblia, além de livros infantis com histórias do cristianismo, de autoconhecimento ou que trazem discussões sobre o evangelho e a teologia de Jesus Cristo.
As compras, geralmente de algumas dezenas de exemplares, são feitas com dispensa de licitação. A modalidade pode ser aplicada para aquisições até o limite de R$ 17,6 mil, conforme estabelece a legislação.
Não se trata de algo exclusivo do atual governo. Fornecedores, como as livrarias católicas Paulus e Maná, vendem materiais do mesmo tipo desde gestões passadas.
A Constituição Federal prevê a possibilidade de assistência religiosa a militares. A Marinha tem 50 capelães, segundo o site do Ordinariado Militar do Brasil.
Não é possível precisar o valor total destinado pela Marinha nos últimos anos para esse fim, uma vez que não há padronização nas compras. Os dados foram apurados pelo Metrópoles por meio do Portal da Transparência e do Painel de Preços do governo federal.
Além disso, o objetivo das aquisições apresentado pela Marinha nem sempre é claro. Há casos em que a Força descreve se tratar da compra de materiais para “estudo bíblico”. Ou fala apenas em obter livros para determinado setor.
Em outras situações, porém, a Marinha é mais específica.
No ano passado, o Centro de Instrução Almirante Wandenkolk (CIAW), por exemplo, adquiriu 13 Atlas Históricos Geográficos da Bíblia, 102 Melhores Histórias Bíblicas e 10 Manuais Bíblicos Ilustrados, por R$ 5.223,06.
Segundo o órgão, são “livros de cultura religiosa para distribuição aos militares”.
Sob o propósito de capacitar oficiais para o exercício das funções previstas nas Organizações Militares da Marinha, o CIAW ministra cursos de formação e de especialização e de aperfeiçoamento.
Por sua vez, ao comprar 80 livros Duas Estradas, Um Só Caminho, do padre Renato Andrade, além de 100 rosários e 100 terços, a Marinha justificou que o material seria usado para distribuição gratuita – “educação social e religiosa a bordo do Navio Escola (NE) Brasil”. Essas aquisições custaram R$ 4,9 mil aos cofres públicos.
A sinopse do livro Duas Estradas, Um Só Caminho diz desejar “que o leitor se torne um seguidor d’Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida”.
O NE Brasil, segundo o próprio site da Marinha, é empregado na fase final da formação dos futuros oficiais.
Cinquenta exemplares do livro Histórias Maravilhosas da Bíblia (por R$ 1.650), destinado ao público infantil, e outros 30 da obra O Temperamento Que Deus Lhe Deu (R$ 1.449), também foram distribuídos gratuitamente pela Escola de Aprendizes de Marinheiros de Pernambuco, mostram registros no Portal da Transparência.
Procurada, a Marinha não se manifestou sobre o caso, nem esclareceu dúvidas da reportagem. O espaço segue aberto.
Uma fonte militar pondera que, ao mesmo tempo que o Estado é laico, a Constituição de 1988 prevê a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva, como quartéis.
O Serviço de Assistência Religiosa das Forças Armadas tem por finalidade “prestar assistência religiosa e espiritual aos militares, aos civis das organizações militares e às suas famílias, bem como atender a encargos relacionados com as atividades de educação moral” realizadas na corporação.
Em abril do ano passado, o Centro de Intendência da Marinha em Niterói empenhou R$ 3.770 para a compra de 14 títulos diferentes. O objetivo: “Fomentar a fé dos que procuram o serviço de assistência religiosa da esquadra”.
Entre os títulos, estão O Sofrimento Nunca É Em Vão, Ego Transformado, O Que É Fé, A Oração Muda As Coisas?, Quem É Jesus?, dentre outros.
Saulo Malcher Ávila, advogado especialista em direito administrativo do escritório Mota Kalume Advogados, aponta potencial ato de improbidade administrativa nas compras de livros cristãos.
“Para além do inevitável debate acerca da possível quebra da laicidade do Estado brasileiro, chama a atenção a utilização de recursos públicos para a aquisição desses bens pelo poder público, pois, a priori, destoa da missão constitucional das Forças Armadas, que se destinam à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, podendo haver desvio de finalidade”, comenta Ávila.
“A conduta também pode estar em choque direto com o princípio da impessoalidade, visto que o dispêndio de recursos públicos não pode ter como critério preferências pessoais. Ainda que tal conduta fosse adotada, ela poderia ser discriminatória, pois os itens se referem a uma religião específica”, diz o advogado.
Por sua vez, o advogado especialista em direito administrativo e sócio do Lecir Luz e Wilson Sahade Advogados Wilson Sahade avalia que a distribuição de livros tem por objetivo a difusão do conhecimento, atendendo aos preceitos do artigo 6º da Constituição Federal.
“[A Constituição Federal] garante a educação como direito social da coletividade, de modo que é uma responsabilidade de todas as entidades basilares do país o incentivo do desenvolvimento educacional, especialmente da Marinha do Brasil, que possui um grande alcance territorial”, assinala. Fonte Metrópoles DF